sábado, 27 de novembro de 2021

Por que Lula não condena o autoritarismo de esquerda?

Por que Lula não condena o autoritarismo de esquerda?

Por Pablo Ortellado
O GLOBO
27/11/2021 • 00:01

No final de sua viagem à Europa, Lula deu entrevista ao jornal espanhol El País e foi questionado sobre o governo de Daniel Ortega na Nicarágua e sobre os protestos em Cuba. Suas respostas talvez evasivas, talvez condescendentes com o autoritarismo de esquerda provocaram amplo debate. Afinal de contas, por que Lula e o PT não conseguem condenar com clareza o autoritarismo na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba?

Cuba é uma ditadura de partido único, sem liberdade de reunião e sem liberdade de organização sindical. O governo da Venezuela subordinou o Legislativo e o Judiciário, acabando com a separação entre os Poderes, redesenhou distritos eleitorais para dificultar a eleição de opositores, perseguiu veículos de imprensa, torturou e assassinou dissidentes. O governo nicaraguense prendeu os candidatos da oposição para poder ganhar as eleições, prendeu arbitrariamente centenas de outros dissidentes e suspendeu a operação de ONGs. Todos esses abusos antidemocráticos estão amplamente documentados nos relatórios das organizações de direitos humanos.

Nos 13 anos em que esteve no poder, o PT não deu muitos sinais de que queria esse tipo de autoritarismo no Brasil. Os críticos do petismo podem dizer que foi apenas falta de oportunidade, mas, agora que conhecemos o governo Bolsonaro, sabemos o tamanho do estrago que um governo realmente orientado ao autoritarismo é capaz de fazer.

O bolsonarismo atacou sem trégua a imprensa, o STF e o Congresso e incitou os militares a promover uma intervenção "constitucional"; além disso, submeteu a um duro controle político a PGR, a Polícia Federal e os órgãos ambientais, destruindo sua autonomia institucional. Perto disso, as críticas dos petistas à imprensa ("Partido da Imprensa Golpista"), a perseguição a Larry Rohter, correspondente do New York Times, e mesmo a tentativa de aprovar a PEC 33, que diminuía o poder do STF, parecem pouco importantes.

Se o tipo de governo de esquerda dos petistas é assim tão diferente do que vemos em Cuba, na Venezuela ou na Nicarágua, por que Lula e seu partido não condenam sem meias palavras esses regimes para afastar qualquer tipo de suspeita de que, se tiverem a oportunidade, podem colocar a democracia brasileira em risco?

A primeira explicação é que o petismo abriga setores autoritários que acreditam que a democracia burguesa não é fundamental e pode —ou deve — ser descartada para enfrentar o inimigo imperialista ou de classe. Esse setor não é majoritário, mas tem peso suficiente para influenciar as posições do partido.

A segunda explicação é o entendimento de que é necessária a solidariedade com os governos de esquerda diante dos adversários imperialistas e da direita. Em vez de criticar o governo de Cuba, deve-se enfatizar o embargo econômico dos Estados Unidos; em vez de criticar Maduro, deve-se enfatizar a oposição golpista.

Essa ênfase nos abusos da reação silencia sobre os abusos da esquerda, mas funciona como uma espécie de garantia de que, quando chegar a vez de a esquerda brasileira ser atacada, ela receberá em troca a solidariedade internacional —como efetivamente ocorreu na época do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.

A terceira explicação é, de certa forma, ligada à segunda: os petistas entendem que o impeachment de Dilma e a prisão de Lula foram uma reação aos avanços sociais produzidos por seus governos e, por não contarem com suficiente apoio interno, precisaram do apoio internacional.

Nessa leitura para lá de particular, Lula não foi investigado porque houve um esquema de corrupção bilionário entre a Petrobras, as empreiteiras e políticos, e Dilma não sofreu impeachment porque era inepta e não sabia negociar com o Congresso. Lula e Dilma, segundo essa versão, foram perseguidos porque as elites não suportaram ver os pobres com comida no prato e as empregadas domésticas andando de avião. Diante do ataque das elites econômicas, a solidariedade internacional seria imprescindível.

A ambivalência do petismo com respeito aos governos autoritários de esquerda é fruto da combinação desses três fatores. E essa ambivalência não é uma excentricidade brasileira. Nos últimos anos, impactou também as candidaturas de Pablo Iglesias, na Espanha; de Jean-Luc Mélenchon, na França; e, mais recentemente, de Gabriel Boric, no Chile.

Nestes tempos em que a democracia é duramente tensionada, não podemos mais nos dar ao luxo de alimentar qualquer ambivalência. Hoje, mais do que nunca, a defesa da democracia precisa estar em primeiro lugar.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Como bancos de couro de SUVs impulsionam o desmatamento da Amazônia.

Como bancos de couro de SUVs impulsionam o desmatamento da Amazônia.

New York Times, 22 de novembro de 2021

BURITIS - Certa manhã deste verão, Odilon Caetano Felipe, fazendeiro que cria gado em terras desmatadas ilegalmente na Amazônia, se encontrou com um negociante e fechou um acordo para a venda de mais 72 animais engordados. Com uma simples canetada, Felipe limpou o registro de seu gado. E, ao vender os animais, ocultou seu papel na destruição da maior floresta tropical do mundo.

No almoço, logo após a venda de 14 de julho, Felipe falou abertamente sobre o negócio que o enriquece. Ele admitiu que corta árvores da densa floresta amazônica e que não pagara pela terra. Também reconheceu que estrutura suas vendas para esconder as verdadeiras origens de seu gado, vendendo-o a um intermediário e forjando registros que mostram, falsamente, que seus animais vêm de uma fazenda legal. Outros fazendeiros da região fazem o mesmo, disse ele.

"Não faz a menor diferença", disse ele, se sua fazenda é legal ou não.

Uma investigação do New York Times sobre a rápida expansão da indústria frigorífica no Brasil – um negócio que vende não apenas carne para o mundo, mas toneladas de couro por ano para grandes empresas nos Estados Unidos e em outros países – identificou lacunas em seus sistemas de monitoramento, o que permite que peles cruas de animais criados em terras desmatadas ilegalmente na Amazônia passem sem detecção pelos curtumes do Brasil e sigam para compradores do mundo todo.

A fazenda de Felipe é uma das mais de 600 que operam em uma área da Amazônia conhecida como Jaci-Paraná, uma reserva ambiental protegida onde o desmatamento é restrito. E transações como a dele são os pilares de um complexo comércio global que liga o desmatamento da Amazônia a um apetite crescente nos Estados Unidos por luxuosos bancos de couro em picapes, SUVs e outros veículos vendidos por algumas das maiores montadoras do mundo, entre elas a General Motors, Ford e Volkswagen.

Um veículo de luxo pode exigir mais de uma dúzia de peles cruas, e os fornecedores americanos compram cada vez mais couro do Brasil. Embora a região amazônica seja um dos maiores fornecedores mundiais de carne bovina, cada vez mais para as nações asiáticas, o apetite global por couro acessível também significa que as peles cruas desses milhões de bovinos abastecem um lucrativo mercado internacional de couro avaliado em centenas de bilhões de dólares por ano.

Esse comércio de couro mostra como os hábitos de compra do mundo rico estão ligados à degradação ambiental nos países em desenvolvimento – neste caso, ajudando a financiar a destruição da Amazônia, apesar de sua valiosa biodiversidade e do consenso científico de que protegê-la ajudaria a desacelerar as mudanças climáticas.

Para rastrear o comércio global de couro desde as fazendas ilegais na floresta tropical brasileira até os bancos de veículos americanos, o Times entrevistou fazendeiros, negociantes, promotores e reguladores no Brasil e também visitou curtumes, fazendas e outras instalações. O Times falou com participantes de todos os níveis do comércio ilícito na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, área do estado de Rondônia que recebeu proteções especiais por abrigar comunidades de pessoas que, ao longo de gerações, viveram da terra por extração de seringueiras.

Essas comunidades agora estão sendo expulsas por fazendeiros que querem terras para o gado. Na última década, os fazendeiros aumentaram significativamente sua presença na reserva e, hoje, cerca de 56% dela foi desmatada, de acordo com dados compilados pelo órgão ambiental estadual.

O relatório também se baseia na análise de dados corporativos e de comércio internacional de diversos países e em milhares de certificados de transporte de gado emitidos pelo governo brasileiro. Os certificados foram obtidos pela Environmental Investigation Agency, um grupo de defesa em Washington. O Times verificou independentemente os certificados e obteve milhares de certificados adicionais em separado.

A investigação possibilitou o rastreamento do couro de fazendas ilegais na Amazônia até instalações operadas pelos três maiores frigoríficos do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – e daí para os curtumes que eles abastecem. A JBS se descreve como a maior processadora de couro do mundo.

Segundo Aidee Maria Moser, procuradora aposentada de Rondônia que passou quase duas décadas lutando contra a pecuária ilegal na reserva Jaci-Paraná, a prática de vender animais criados na reserva para intermediários indica a intenção de ocultar sua origem.

"É uma forma de dar uma aparência de legalidade ao gado", disse ela, "para que os frigoríficos neguem que haja algo ilegal".

O problema não se limita a Rondônia. No mês passado, uma auditoria conduzida por procuradores do Pará, estado vizinho e lar do segundo maior rebanho bovino da Amazônia, constatou que, entre janeiro de 2018 e junho de 2019, a JBS comprou 301 mil animais, o equivalente a 32% de suas compras no estado, de fazendas que violavam os compromissos de prevenir o desmatamento ilegal.

A JBS discordou dos critérios utilizados pelo Ministério Público e, em resposta à auditoria, concordou em aprimorar seu sistema de monitoramento, bloquear os fornecedores sinalizados pela pesquisa e doar US $ 900 mil ao estado.

Para ter uma ideia da escala das fazendas que operam em áreas vulneráveis de toda a Amazônia brasileira, o Times sobrepôs mapas governamentais de terras protegidas da Amazônia, áreas desmatadas e limites de fazendas, com as localizações das fazendas que a JBS listou publicamente como fornecedoras de seus matadouros em 2020. Uma análise mostrou que, entre as fornecedoras da JBS, fazendas que cobrem cerca de 6500 quilômetros quadrados se sobrepõem significativamente a terras indígenas, áreas de conservação ou regiões que foram desmatadas após 2008, quando se implementaram as leis que regulamentam o desmatamento no Brasil.

A metodologia e os resultados foram examinados e verificados por uma equipe de pesquisadores e acadêmicos independentes que estudam o uso do solo na Amazônia brasileira.

Os dados do comércio internacional mostraram que as empresas proprietárias de curtumes abastecidos com as peles cruas enviaram couro para fábricas no México administradas pela Lear, uma grande fabricante de assentos que abastece montadoras de automóveis nos Estados Unidos. Em 2018, a Lear disse que estava comprando cerca de 70% de suas peles cruas do Brasil. As peles brasileiras também vão para outros países, entre eles Itália, Vietnã e China, para uso nas indústrias automotiva, de moda e de móveis, mostraram os dados comerciais.

A JBS reconheceu que quase três quartos das fazendas identificadas na análise do Times se sobrepõem a terras que o governo classifica como desmatadas ilegalmente ou terras indígenas e zonas de conservação. Mas informou que todas as fazendas cumpriam as regras para evitar o desmatamento quando a JBS comprara suprimentos delas.

A JBS informou que, nos casos de sobreposição, as fazendas foram autorizadas a operar em áreas protegidas ou desmatadas, ou tiveram seus limites alterados, ou seguiram regras para corrigir suas violações ambientais. A pecuária é permitida em algumas áreas protegidas no Brasil, desde que siga práticas sustentáveis.

Em nota, a JBS informou que há mais de uma década mantém um sistema de monitoramento que verifica o cumprimento da política ambiental pelos fornecedores. "Mais de 14 mil fornecedores foram bloqueados por descumprirem esta política", disse a nota. Porém, afirmou a empresa, "o grande desafio da JBS, e da cadeia produtiva da pecuária de corte em geral, é monitorar os fornecedores de seus fornecedores, uma vez que a empresa não tem informações a seu respeito".

O desmatamento da Amazônia aumentou nos últimos anos, à medida que os fazendeiros corriam para atender à crescente demanda por carne bovina, especialmente da China. Representantes da indústria do couro afirmam que, enquanto houver demanda por carne bovina, eles simplesmente usarão peles cruas que, de outra forma, seriam enviadas para aterros sanitários.

Raoni Rajão, que estuda as cadeias produtivas da Amazônia na Universidade Federal de Minas Gerais, disse que, como a indústria do couro torna a pecuária mais lucrativa, ela compartilha a responsabilidade por qualquer desmatamento. "O couro pode ter alto valor agregado", disse ele.

A perda da floresta está destruindo a capacidade de a Amazônia absorver dióxido de carbono, que as árvores retiram do ar. O dióxido de carbono da queima de combustíveis fósseis é o principal motor das mudanças climáticas. O Brasil foi uma das mais de 100 nações que se comprometeram a acabar com o desmatamento até 2030 na recente cúpula do clima das Nações Unidas em Glasgow, na Escócia.

Embora a maioria das fazendas na região amazônica não esteja ligada ao desmatamento ilegal, as descobertas mostram como o couro ilegal está entrando na cadeia de abastecimento global, contornando um sistema que os próprios frigoríficos e empresas de couro criaram nos últimos anos para tentar mostrar que seu gado vem apenas de fazendas legítimas.

Em resposta a perguntas detalhadas, JBS, Marfrig e Minerva disseram não saber que o gado da reserva Jaci-Paraná estava entrando em suas cadeias de abastecimento.

As três empresas disseram que têm sistemas para monitorar fazendas que abastecem diretamente seus frigoríficos e que excluem fazendas que não cumprem as leis ambientais. Mas todas reconheceram que não conseguem rastrear fornecedores indiretos, como Felipe, que vende gado por intermediários, mascarando suas origens.

A Lear disse que tem "um processo de abastecimento robusto" que garante que a empresa trabalhe "com os fornecedores mais capazes e avançados, comprometidos com a compra de peles de gado criado em fazendas que seguem as regras". A empresa disse que, se os fornecedores violassem suas políticas, tomaria medidas que podem ocasionar o cancelamento de seus contratos "e/ou ação legal contra o fornecedor".

A GM disse que espera que os fornecedores "cumpram as leis, regulamentos e ajam de maneira consistente com os princípios e valores" da montadora. A Ford disse que aspirava a "fornecer apenas matérias-primas produzidas de maneira responsável". A Volkswagen disse que seus fornecedores já aderem a um alto nível de sustentabilidade.

Em Jaci-Paraná, a demanda global por couro está ajudando a sustentar um rebanho crescente de 120 mil bovinos onde antes havia floresta. "Se todo o gado fosse vendido", disse Moser, a ex-promotora, o governo teria dinheiro suficiente "para reflorestar toda a reserva".

'Eu vim aqui para matar vocês'
Chovia torrencialmente quando dois homens atracaram na casa de Lourenço Durães às margens do rio Jaci-Paraná, em dezembro do ano passado. Durães, seringueiro de 71 anos, convidou os homens a entrar e lhes ofereceu café. Então, depois de passar alguns minutos falando sobre o tempo, um dos visitantes foi direto ao ponto.

"Não vou enganar vocês", disse ele, segundo Durães e um de seus amigos, que juntos descreveram o encontro recentemente. "Eu vim aqui para matar vocês".

Os homens queriam se livrar de Durães porque a sua terra é muito valiosa para os fazendeiros.

Jaci-Paraná foi criada em 1996 para conceder a uma comunidade de seringueiros o direito de buscar seu sustento. Durães está entre os últimos seringueiros. A comunidade está sendo expulsa pelo desmatamento.

"Estamos com medo, mas espero justiça", disse Durães, acrescentando que acredita ter sido poupado naquele dia por ser idoso.

Segundo Durães e um boletim de ocorrência de seu amigo, o pistoleiro identificou a pessoa que o enviara, mas apenas por um apelido. A polícia não investigou o caso, de acordo com o boletim de ocorrência, porque Durães e o seu amigo não conseguiram fornecer o nome completo da pessoa para apresentar queixa.

Em entrevista, Lucilene Pedrosa, que dirige a divisão regional da polícia, disse que sua equipe estava esperando que os homens dessem mais informações para dar continuidade à investigação.

Dados do governo analisados pelo Times mostram o apetite por terras na região. De acordo com os números, entre janeiro de 2018 e junho de 2021, fazendas operando em terras desmatadas ilegalmente em Jaci-Paraná venderam pelo menos 17,7 mil cabeças de gado para fazendas intermediárias. Os compradores eram fornecedores dos três grandes frigoríficos, JBS, Marfrig e Minerva, segundo dados governamentais e corporativos.

Quase metade dessas 17,7 mil cabeças de gado foi comprada por Armando Castanheira Filho, um negociante local que tem sido um dos maiores compradores da região de Jaci-Paraná e fornecedor direto dos três grandes frigoríficos. As vendas que passam por ele criam um registro que oculta que o gado é originário de fazendas ilegais.

Um repórter do Times testemunhou uma transação desse tipo quando Felipe, o fazendeiro que admitiu participação no desmatamento, vendeu seus 72 bovinos este ano. O comprador, nesse dia, foi Castanheira.

O Times então rastreou os animais. Onze horas depois, eles foram parar em um matadouro da Marfrig.

A Marfrig mantém um site que lista a procedência de seu gado, um esforço para mostrar que adquire gado de forma responsável. No caso da remessa de 14 de julho rastreada pelo Times, a fazenda de Felipe não está listada no site. Mas a lista de fazendas que forneceram gado para o abate do dia seguinte inclui a fazenda da Castanheira, que fica fora da reserva.

No final daquele dia, no matadouro da Marfrig, um caminhão com o nome do curtume Bluamerica saiu do matadouro carregando peles cruas. O Bluamerica é um dos curtumes que abastece a Lear, a fabricante de bancos de automóveis.

Castanheira confirmou que parte do gado que compra da reserva vai direto para o abate, sem passar por sua fazenda, embora a papelada indique que vem de seus pastos. Ele negou ter feito isso para esconder a origem do gado.

"Não faço isso para 'lavar' nada", escreveu ele em uma mensagem de texto. Ele disse que sua intenção era simplesmente lucrar com a diferença entre o que ele paga por animal e o que pode receber do matadouro.

Marfrig, Minerva e JBS disseram não despachar caminhões para coleta de gado na reserva Jaci-Paraná, ou em qualquer local que não seja de seus fornecedores diretos. Os advogados da Marfrig também entraram com uma queixa junto à polícia, relacionando os fatos descritos pelo Times e os qualificando como "possíveis episódios de natureza criminosa".

Castanheira agora afirma que o repórter do Times testemunhou o único exemplo desse tipo de transação feita por ele. Os três frigoríficos afirmam já ter excluído Castanheira de seu pool de fornecedores.

Duas das proprietárias do Bluamerica, empresas chamadas Viposa e Vancouros, disseram que seus fornecedores são sujeitos a auditorias regulares e reconheceram os desafios de rastrear fornecedores indiretos. Ambas as empresas disseram estar trabalhando com o World Wide Fund for Nature, grupo ambientalista com sede na Suíça, para melhorar seus sistemas.

Uma análise dos dados do governo sobre a movimentação de gado em Jaci-Paraná e áreas próximas entre 2018 e 2021 identificou 124 transações que mostram sinais de lavagem de gado, dizem os especialistas. As transações mostram que pelo menos 5.600 cabeças de gado foram transferidas das fazendas da reserva para intermediários que, no mesmo dia, venderam gado para os três grandes frigoríficos.

Holly Gibbs, geógrafa da Universidade de Wisconsin-Madison que pesquisa o agronegócio na Amazônia há uma década, disse que, embora os intermediários legítimos muitas vezes comprem e vendam gado no mesmo dia, o fato de as transações não serem monitoradas de perto "é uma enorme brecha".

"Eles estão trazendo para as cadeias de abastecimento nacionais e internacionais animais que foram criados numa área protegida", disse ela.

A cadeia de suprimentos – da fazenda ao showroom de automóveis – é complexa. As peles cruas dos frigoríficos Minerva e JBS vão para curtumes próprios da JBS, ao passo que as peles cruas da Marfrig são processadas principalmente pela Vancouros e Viposa, segundo dados corporativos e entrevistas. Dados comerciais compilados pela Panjiva, a unidade de pesquisa sobre cadeia de suprimentos da S&P Global Market Intelligence, mostram que a fabricante de assentos Lear, com sede em Southfield, Michigan, é a maior compradora americana de peles cruas da JBS, Vancouros e Viposa.

Em maio, fazendeiros ilegais em Jaci-Paraná conquistaram uma importante vitória. O governador de Rondônia sancionou uma medida que reduziu o tamanho da reserva em 90%.

A lei, que os promotores estão contestando na Justiça, abre caminho para que fazendeiros de terras desmatadas ilegalmente legalizem seus negócios. Os críticos da lei disseram que ela poderia abrir um precedente para mais desmatamento em outras reservas protegidas.

Independentemente do desfecho dessa luta judicial, Durães, o seringueiro, disse que não tinha intenção de sair de seu pedaço de mata. O pasto agora está a menos de um quilômetro de sua casinha de madeira.

Viver entre as árvores exuberantes é a única existência que ele conhece. E ficar, disse ele, é "a única maneira de manter a floresta de pé".

"Transparência" com brecha
A cada poucos segundos, no curtume Vancouros, no sul do Brasil, o som de peles cruas caindo em dezenas de tambores de madeira de 3 metros de altura é interrompido pelos cliques de um marcador pneumático, com o qual cada peça é perfurada com um código de sete dígitos que registra sua origem.

Clébio Marques, diretor comercial do curtume, puxou da pilha uma pele crua azulada e úmida, pegou seu celular e digitou o código no site que sua empresa criou para clientes como a Lear. Apareceram os detalhes do fornecedor daquela peça específica.

"Todo o nosso couro é rastreável", disse ele. "Não é obrigatório, ninguém pediu, mas sentimos que o mercado precisava de mais transparência".

Mas então Marques foi apresentado à descoberta de que um de seus fornecedores mais importantes, a Marfrig, estava comprando gado de fornecedores cujas transações apresentavam sinais de lavagem de gado. "Estou surpreso", disse ele. "Esperamos que os produtos sejam legais".

Ele ressaltou, porém, que a culpa não era do monitoramento de sua própria empresa.

"Temos que confiar nos documentos que nos são fornecidos, porque nossa auditoria é feita com base no sistema deles", disse Marques.

Todos os três grandes frigoríficos têm sistemas projetados para rastrear a última fazenda de onde veio o gado que abatem. No entanto, todos os três têm a mesma falha: não levam em consideração o fato de que o gado normalmente não passa a vida inteira em uma única fazenda. Portanto, não consideram que um fornecedor direto possa estar vendendo gado que foi efetivamente criado por outra pessoa, em terras desmatadas ilegalmente.

Os sistemas de rastreamento foram criados após um relatório do Greenpeace de 2009, o qual relacionou os fornecedores brasileiros de carne e couro ao desmatamento ilegal. Hoje, as três principais empresas afirmam que têm políticas de desmatamento de tolerância zero para todos os fornecedores diretos.

Todos os três principais matadouros apresentam publicamente seus dados de rastreamento online. Os da JBS são os mais detalhados; as outras empresas omitem as localizações precisas das fazendas. Foi a análise do Times desses dados da JBS para 2020, o ano mais recente disponível, que indicou que entre os fornecedores da empresa se encontravam fazendas que podem ter violado as regras do governo destinadas a evitar o desmatamento e o deslocamento de povos indígenas.

A JBS disse que todos os seus fornecedores estavam em conformidade no momento da compra. Marfrig e Minerva disseram que compartilharam as informações sobre seus fornecedores diretos que são permitidas pela lei de privacidade de dados do Brasil.

Como parte desse processo, os curtumes contam com uma organização financiada pelo setor, o Leather Working Group, para certificar sua conformidade com as normas. O grupo atribuiu sua classificação máxima, "ouro", a todos os curtumes amazônicos que fornecem couro à Lear, o que significa que seguem práticas ambientalmente sustentáveis.

Em nota, o grupo afirmou estar trabalhando para melhorar seus protocolos de rastreamento, mas que, "devido à complexidade dos sistemas agrícolas no Brasil e à falta de bancos de dados disponíveis ao público, ainda não há, infelizmente, uma solução fácil para esta situação".

JBS, Marfrig e Minerva se comprometeram publicamente a melhorar o rastreamento das fazendas que vendem gado a seus fornecedores diretos. A JBS disse que rastreará uma camada de fornecedores indiretos até 2025. A Marfrig prometeu rastrear todos os seus fornecedores indiretos na Amazônia até 2025. E a Minerva disse que terá cadeias de suprimentos totalmente rastreáveis na América do Sul até 2030.

"Apenas a rastreabilidade do nascimento até o abate para animais individuais poderá garantir que não haja desmatamento nessas cadeias de suprimento de alto risco na Amazônia", disse Rick Jacobsen, da Environmental Investigation Agency, o grupo sem fins lucrativos.

Do Brasil para os carros dos Estados Unidos
Os bancos de couro do SUV Escalade, da Cadillac, descrito por um revendedor no estado de Washington como "um hotel de luxo sobre rodas", pode elevar o preço do modelo top de linha da GM para mais de US $ 100.000.

O Escalade é um dos muitos veículos vendidos nos Estados Unidos que usa bancos de couro e outros acabamentos da Lear, empresa que domina cerca de um quinto do mercado mundial de assentos de automóveis.

Nem a Lear nem a GM registram de onde vem o couro para os bancos do carro. As importações de couro brasileiro pela Lear aumentaram na última década, impulsionadas por um salto na oferta de couro proveniente da JBS, de acordo com dados da Panjiva, a empresa de dados sobre cadeias de suprimentos. No ano passado, a Lear foi a maior importadora americana de couros e peles cruas do Brasil, importando cerca de 6 mil toneladas, a maior parte da JBS, segundo dados da Panjiva.

Caminhonetes de grande porte e utilitários esportivos grandes são uma força crescente por trás da demanda por acabamentos de couro na indústria automobilística. Para muitos compradores, o couro "é sinônimo de luxo e geralmente agrega um valor significativo na revenda", disse Drew Winter, analista sênior da Wards Intelligence, uma empresa de pesquisa automotiva.

Raymond E. Scott, CEO da Lear, expôs a importância dos veículos de luxo em uma apresentação para investidores em junho. A empresa detém 45% do mercado de luxo, disse. E o que estava impulsionando o crescimento no negócio de assentos de Lear era "realmente a força das picapes e SUVs da GM", uma linha que também inclui os modelos Yukon, Chevrolet Tahoe e Suburban.

No Brasil, "100% dos nossos fornecedores usam geofencing" (uma tecnologia que usa GPS para estabelecer uma cerca virtual) "para garantir que eles não comprem animais de fazendas envolvidas com o desmatamento", disse Lear em um comunicado de 2018.

No entanto, as descobertas do Times no Brasil indicam que os fornecedores da Lear não tinham a capacidade de rastrear todo o gado dessa forma.

A Lear disse que exige que todos os fornecedores cumpram uma política de não desmatamento, a qual proíbe o uso de qualquer material proveniente de áreas desmatadas ilegalmente ou de terras indígenas ou outras regiões protegidas. De acordo com registros corporativos, os outros maiores clientes de Lear são Ford, Daimler, Volkswagen e Stellantis, formadas a partir da fusão da Fiat Chrysler com a fabricante francesa de carros Peugeot e Citroën.

A GM disse que sua cadeia de suprimentos foi "construída sobre relacionamentos fortes, transparentes e confiáveis". A Ford disse que exige padrões ambiciosos de si mesma e de seus fornecedores e que "se sai bem em muitas áreas, mas pode melhorar em outras". A Volkswagen disse que está trabalhando para rastrear melhor a cadeia de suprimentos até a fazenda.

A Daimler disse que uma pequena porcentagem de seu couro vem do Brasil. A Stellantis disse que compartilha preocupações sobre rastreabilidade e está trabalhando ativamente para confirmar a localização de curtumes e fazendas em sua cadeia de suprimentos.

No ano passado, cerca de um terço das 15 mil toneladas de couro importadas para os Estados Unidos vieram do Brasil, que recentemente ultrapassou a Itália e se tornou o maior exportador de couro e peles cruas para a América. Muito desse aumento pode ser atribuído à indústria automobilística.

A maior parte dos embarques de couro da JBS para a Lear viaja de São Paulo para Houston, segundo dados comerciais da Panjiva. De lá, grande parte é transportada de caminhão pela fronteira mexicana até uma das duas dúzias de fábricas de assentos de automóveis operadas pela Lear no México, onde os trabalhadores cortam as peles cruas e as costuram nas capas dos assentos.

O couro é então transportado de volta pela fronteira. De janeiro de 2019 a junho de 2021, as fábricas da Lear no México enviaram pelo menos 1.800 toneladas de couro para os Estados Unidos, de acordo com dados de transporte registrados pela Material Research.

Seu destino final: instalações da Lear em todo o país. Elas tendem a se localizar mais próximo das montadoras de automóveis, facilitando que a empresa combine as cores e outras variações dos modelos que chegam nas linhas de montagem dos veículos.

Um desses destinos é a fábrica da GM em Arlington, Texas, uma instalação que se estende por 1 quilômetro quadrado onde a montadora produz alguns dos maiores e mais luxuosos modelos da empresa, entre eles o Escalade. Os trabalhadores automotivos montam cerca de 1.300 SUVs por dia para venda nos Estados Unidos e também para exportação.

A dez minutos de carro do local, a Lear possui uma fábrica de assentos de couro. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.