sexta-feira, 29 de julho de 2022

50 anos do Orelhão: um marco do design nostálgico das cidades

50 anos do Orelhão: um marco do design nostálgico das cidades

Conheça a história do icônico Orelhão, criado por Chu Ming Silveira, para ser uma solução de comunicação nas cidades

Por Ana Harada Atuali.

Atualizado em 7 jun 2021, 17h46 - Publicado em 8 jun 2021, 08h00 
Chu Ming Silveira falando no orelhão em frente à FAU - USPChu Ming Silveira falando no orelhão em frente à FAU – USP Orelhao.arq/Reprodução

Você GenZer, que nunca teve que viver a vida sem um smartphone, provavelmente só conhece esse objeto chamado "Orelhão" por fotografias ou por relatos de terceiros. A verdade é que esse sistema de comunicação marcou toda uma geração de pessoas e a paisagem urbana dos anos 1970, 1980 e 1990. E, para quem era criança na época, possivelmente era a fonte de muita diversão e trotes (porque não havia identificador de chamadas).


Veja a história desse objeto histórico e intrigante do design brasileiro que faz 50 anos este ano!

História

 

Projeto em desenho técnico do orelhão– Orelhao.arq/Reprodução

A designer que criou o Orelhão é Chu Ming Silveira, uma imigrante de Xangai que chegou ao Brasil em 1951 com a família. No começo da década de 1970, Chu Ming era chefe Departamento de Projetos da Companhia Telefônica Brasileira e recebeu o desafio de criar um telefone público que fosse barato e mais funcional do que os telefones sem nenhuma proteção que ficavam em farmácias, bares e restaurantes.

Chu Ming Silveira falando no orelhão posando para foto em jornal– Orelhao.arq/Reprodução

Como as conhecidas cabines telefônicas de Londres, a ideia era que o projeto oferecesse privacidade para quem estivesse falando, tivesse uma boa relação custo-benefício e que fosse adequada às temperaturas quentes do Brasil. Assim surge o Chu I e Chu II – nome original e oficial do Orelhão – em 1971.


Design

 

Orelhão transparente dentro de mercearia. Latas empilhadas ao fundo– Tecnoblog/Reprodução
Inspirado em um ovo e fabricado em fibra de vidro e acrílico, o Orelhão e a Orelhinha, além de baratos, tinham uma acústica excelente e resistência ótima. Por serem de fácil instalação, eles logo se popularizaram nas ruas e em ambientes semiabertos (como escolas, postos de gasolina e outros locais públicos). Havia modelos em cor laranja e transparentes.
Duas pessoas de costas cada uma falando em um orelhão– Reprodução/ArchDaily

Em janeiro de 1972, o público viu pela primeira vez o novo telefone público: no Rio de Janeiro, no dia 20, e em São Paulo, no dia 25. Era o começo de uma era icônica da comunicação, que teve direito a até uma crônica de Carlos Drummond de Andrade!

Conjunto de três orelhões em cidade com filas de pessoas para falar. Foto preta e branca– Reprodução/Wikimedia Commons

Não foram só os brasileiros que adoraram o Orelhão, eles foram implementados em países da África e Ásia e também da América Latina.

Homem de terno falando em orelhão laranja transparente encostado em parede azul. Foto de época– Reprodução/Pinterest

Uma curiosidade é que os teclados do telefone do Orelhão possuem letras, ou seja, podem ser utilizados para escrever palavras. Algumas empresas incorporavam as letras de seus nomes em seus números de telefone.

Orelhão com grafismos atualmente, na avenida paulista– Reprodução/Pinterest

Hoje, com o surgimento e popularização dos celulares, os Orelhões foram caindo em desuso, mas ainda existem nas cidades como um marco nostálgico que pode ser útil caso você precise fazer um telefonema e ninguém tiver celulares por perto.

Confira mais informações no site oficial do Orelhão!

segunda-feira, 18 de julho de 2022

​O fiador do caos

O fiador do caos
Editorial do Estadão 
18/7/22

Sem espírito público, Arthur Lira não está à altura do comando da Câmara neste grave momento do País. Atropelando normas e ritos, aliou-se ao atraso bolsonarista para dele extrair poder

A democracia tal como a conhecemos se esvai quando os indivíduos à frente das instituições republicanas não se mostram dispostos a defender seus valores e pressupostos com espírito público, coragem e obstinação.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), não se mostrou à altura do comando de uma das Casas Legislativas neste terrível momento da história do País. Ao contrário: aliou-se e deu sobrevida ao atraso bolsonarista, para dele extrair poder. Falta-lhe espírito público.

Ao atropelar normas e ritos com o objetivo de impor a pauta legislativa de seu interesse, Lira desmoraliza algumas das mais importantes conquistas da sociedade nas últimas décadas, conquistas estas materializadas em um arcabouço jurídico-normativo que, até agora, fazia do Brasil um país minimamente civilizado no que concerne ao trato do Orçamento público, à livre atuação das oposições no Parlamento, ao respeito às decisões da Justiça e ao regramento das eleições.

A fim de acomodar interesses financeiros e eleitorais muitíssimo particulares, Arthur Lira tem usado seu enorme poder para respaldar o desmanche de todo aquele ordenamento – e diante dos olhos de cidadãos a um só tempo incrédulos, indignados e desalentados. Sob sua gestão à frente da Casa, o que tem sido visto é a completa subversão do papel da Câmara dos Deputados como representante dos interesses da sociedade, e não dos parlamentares.

De sua cadeira na Mesa Diretora, Arthur Lira não só tem sido tépido em relação aos desabridos ataques perpetrados pelo presidente Jair Bolsonaro contra o Estado Democrático de Direito, como ele mesmo tem usado e abusado de suas prerrogativas no cargo para fazer letra morta do Regimento Interno da Casa – que passou a ser o que lhe der na veneta, não o que está escrito –, da Lei de Responsabilidade Fiscal, da Lei Eleitoral e, o que é ainda mais grave, para chancelar mudanças importantíssimas na Constituição de afogadilho, sem o devido debate democrático. A gestão Arthur Lira é uma sucessão de absurdos.

Cerca de duas semanas após o deputado alagoano ter sido eleito e empossado como presidente da Câmara dos Deputados, defendemos nesta página que, em sua nova e nobre condição, Arthur Lira haveria de ter "uma visão republicana sobre o papel institucional da Casa, locus de representação permanente da sociedade, independente, por óbvio, das fugazes associações ao governo de turno" (ver editorial O livre exercício da oposição, publicado em 20/2/2021). O tempo, contudo, mostrou a que veio Arthur Lira.

É de justiça reconhecer que Lira não teria tido sucesso em suas manobras se não tivesse amplo apoio. Seus pares, em muitas ocasiões, a ele se associaram em suas investidas contra a Constituição, a Lei Eleitoral e as regras de ancoragem fiscal do País, inclusive – e sobretudo – parlamentares de oposição ao governo. No mínimo, omitiram-se diante do descalabro. Mas o fato é que Arthur Lira é a personificação da crise de representação política que tanto mal tem feito ao Brasil. O presidente da Câmara simboliza o desarranjo institucional que assola o País, em uma simbiose com o presidente Jair Bolsonaro que tem se mostrado tão danosa ao interesse público.

Ainda faltam longos sete meses para o término de seu mandato, mas já é possível afirmar que o deputado Arthur Lira entrará para a história do Congresso como um dos principais fiadores do caos instalado no País pelo desgoverno de Jair Bolsonaro. Afinal, é dele, Lira, a prerrogativa exclusiva de autorizar a abertura de processos de impeachment contra o presidente da República, além de, no âmbito da Casa que comanda, acionar o sistema de freios e contrapesos em defesa da democracia. Numa e noutra missão, Lira tem falhado miseravelmente.

Quando a sociedade, enfim, acordar desse terrível pesadelo que já dura quase quatro anos, haverá de lembrar que Bolsonaro só foi tão longe em seus desideratos liberticidas porque pôde contar com a atuação reptiliana de autoridades que se portaram muito aquém da responsabilidade exigida de suas altas posições na República.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

O papel do Supremo na democracia

O papel do Supremo na democracia

STF está sob ataque. Os cidadãos precisam entender o que está em jogo quando isso acontece e por que defender a instituição é o mesmo que defender a liberdade e a paz social

   
Editorial - O Estado de S.Paulo
02 de maio de 2022 | 03h00

O Supremo Tribunal Federal (STF) está sob ataque. Real e simbólico. Não há outra forma de descrever as ações hostis e o desrespeito a decisões da Corte por parte do presidente Jair Bolsonaro e de parlamentares e lideranças do Congresso. O momento é gravíssimo. O País não assistia a uma afronta tão desabrida à instância máxima do Poder Judiciário desde o conflituoso mandato do presidente Floriano Peixoto (1891-1894). O "Marechal de Ferro" não era um democrata e fazia pouco-caso da tripartição dos Poderes da República e do sistema de freios e contrapesos. Assim como Bolsonaro.

Os cidadãos precisam ter em conta o que está em jogo quando o Supremo é atacado, seja por meio de ameaças explícitas ou veladas a seus ministros, servidores e familiares, depredações de suas dependências físicas ou pelo descumprimento puro e simples de suas decisões. Em outras palavras: é preciso entender qual é o papel de uma Corte Suprema na democracia e por que defender a instituição é o mesmo que defender a manutenção das liberdades civis e da paz social.

A Constituição, em seu artigo 102, delega sua guarda ao Supremo. Do ponto de vista prático, "guardar" a Constituição significa interpretar o seu texto e ter a palavra final diante de conflitos em torno de nosso pacto social. Quando o Supremo é desqualificado como última instância com poder para dirimir esses conflitos e pacificar a sociedade, rui a própria ideia da Justiça como um avanço civilizatório. A partir daí, vale tudo, não há mais limites. Comandos legais correm o risco de perder valor. Em casos extremos, cidadãos podem olhar para esse processo de deslegitimação do Supremo – liderado por altas autoridades da República, que deveriam servir como modelos de cidadania e respeito às leis – como uma espécie de autorização tácita para resolver suas contendas particulares da forma que bem entenderem, inclusive pela imposição da força bruta.

Nas noites em que consegue dormir, Jair Bolsonaro decerto sonha com esse ambiente caótico, beirando a distopia, em que a força até mesmo das armas prevalece sobre o diálogo e as leis. Uma sociedade conflagrada, sem um "árbitro" reconhecido por todos como a autoridade apta a "guardar" as regras do jogo, é tudo o que o presidente da República quer para exercitar seus delírios de poder.

Não se pode perder de vista que a campanha de difamação do Supremo capitaneada por Bolsonaro mira a desqualificação do Poder Judiciário, especificamente do Tribunal Superior Eleitoral, como garantidor do resultado das eleições de 2022, que Bolsonaro não reconhecerá caso seja derrotado. O presidente teve a audácia de pugnar até por uma "apuração paralela" do resultado das urnas pelas Forças Armadas. Isso não é autorizado pela Constituição nem tampouco é atribuição dos militares. Logo, ao atacar o guardião da Constituição, Bolsonaro pavimenta o caminho para impor as "leis" que lhe derem na veneta.

Para Bolsonaro, o arranjo institucional ideal seria o modelo pré-Revolução Americana, quando o Judiciário, antes do advento da Supreme Court, era uma espécie de anexo do Executivo. Mas nem é preciso ir tão longe no tempo. Bolsonaro já se contentaria em ver no Brasil a mesma submissão de juízes ao chefe de governo que é vista hoje em países como a Hungria e a Venezuela.

Por sua vez, o Congresso, que deveria cerrar fileiras em defesa do Estado Democrático de Direito, toma parte no conflito com o Supremo por ver no Judiciário, tal qual Bolsonaro, um anteparo às suas investidas sobre o Orçamento da União. Jamais os parlamentares se refestelaram tanto com recursos públicos como agora. Cobrados pelo Supremo a dar transparência às emendas de relator, base do "orçamento secreto", os presidentes das duas Casas Legislativas ignoraram olimpicamente a decisão emanada do outro lado da Praça dos Três Poderes.

A sociedade brasileira precisa se erguer contra esses ataques à autoridade do Supremo. Errando ou acertando em suas decisões, um STF íntegro do ponto de vista institucional é o último refúgio antes da barbárie.


sexta-feira, 15 de abril de 2022

"permitir tudo, paradoxalmente, pode levar a ditaduras."

Como seria o Twitter de Elon Musk?
Por Pedro Dória
ESTADÃO 15/04/2022

"permitir tudo, paradoxalmente, pode levar a ditaduras."

Homem mais rico do mundo, Elon Musk fez uma oferta de US$ 54,20 para cada ação do Twitter 

Ao fazer uma oferta pela compra de 100% do Twitter, Elon Musk fixou o preço por ação em US$ 54,20. Quem é do Vale do Silício e conhece Musk, logo percebeu a piada. A popular banda local de rock, os Grateful Dead, surgida ainda no tempo dos hippies, promoveu em 20 de abril de 1991, às 16h20, um concerto de celebração da cultura da maconha.

Em inglês, data e hora se escrevem 4/20, 4:20pm. 420 é código. Musk, o homem mais rico do mundo pela lista da Forbes, é militante pela causa da legalização. A piada embutida no valor não é irrelevante para analisar o impacto da oferta. Nela, está uma pista para entender a cabeça política do criador da Tesla. E isto é fundamental para avaliar que tipo de Twitter ele pensa para o futuro.

Nesta quinta, 14, foi iniciada por Musk uma tentativa de aquisição hostil da principal rede social voltada para política do mundo. Musk é, nos costumes, abertamente progressista. Certa vez, quando muita gente insistia que ele se posicionasse no jogo partidário, Musk se recusou.

Ainda assim, quem está animado com a aquisição do Twitter, nos EUA, é a direita. "É importante que tenhamos uma arena para que a liberdade de expressão seja exercida de forma inclusiva", afirmou ele em uma conferência que ocorre no Canadá. Em outra ocasião, se declarou um "absolutista da livre expressão".

Entrevistado pela New Yorker para um perfil de seu ex-sócio Peter Thiel, Musk deu a pista chave. "Sou um quê libertário", disse, "mas Peter é extremamente libertário."

Há duas formas de encarar a ideia de liberdade. Uma, mais individualista, parte do exercício pessoal de cada um. Outra vem do princípio de que é preciso que alguma força externa garanta seu exercício da liberdade. O Estado, por exemplo. Muitos compreendem que os conceitos convivem. Libertários, não. Libertários veem na ação do Estado para proteger uns a interferência na liberdade de outros.

A discussão é filosófica mas trata do mundo real. Neste momento, há grupos que se utilizam da liberdade de expressão para manipular informação pelas redes e assim distorcer a percepção da realidade de uma ampla parcela da sociedade. Isto é se utilizar das ferramentas da democracia para fraudar a compreensão do eleitor e assim obter ganhos políticos. É judô. Usar a força da democracia contra ela própria.

O Twitter é a mais influente rede social no debate público em vários países, inclusive no Brasil. Não sabemos o que é ser "um quê libertário" ou o que é "liberdade de expressão inclusiva". Mas permitir tudo, paradoxalmente, pode levar a ditaduras.

terça-feira, 12 de abril de 2022

O que será que será de Ipanema sem cinemas, teatros, galerias de arte e a livraria que fecha as portas hoje?

O que será que será de Ipanema sem cinemas, teatros, galerias de arte e a livraria que fecha as portas hoje?
Por Joaquim Ferreira dos Santos
O GLOBO - 11/04/2022 • 01:05
CRÔNICA DE SEGUNDA


Gentrificação, o enobrecimento de uma área da cidade, é palavra horrível para se começar uma crônica e me lembra o verso do Ferreira Gullar, aquele do "Introduzo na poesia a palavra diarreia". Ela está sendo introduzida na crônica de costumes porque o Rio sofre a gentrificação pelo avesso. Não é mais o enobrecimento, mas o empobrecimento da alma dos bairros. Eles estão ficando todos iguais.

Hoje, ao fim do dia, quando a Livraria Galileu cerrar suas portas, Ipanema, sempre valorizada como ícone mundial da boemia intelectual, restará com apenas uma livraria e um sebo. Junte-se a isso os teatros fechados, os cinemas idem e as galerias de arte, coitadas, essas então, nem se fala. Ipanema dá mais um passo para virar uma imensa Copacabana.

A Galileu era sem charme, sem livreiros especializados e sem gatos coreografando delicadeza pelos cantos – mas era uma livraria. Lembrava glórias do ramo local, como a Dazibao, a Muro, a Carlitos, a Francisco Alves e a Letras&Expressões. Ronronava uma brisa da boa civilidade carioca no trecho que vai da Joana Angélica, no centro do bairro, até sua fronteira ao norte, na esquina de Gomes Carneiro com Francisco Sá.

Esses quarteirões formam um corredor de redes de farmácias, agências bancárias, supermercados, academias de ginástica, lojas de inconveniências, tudo cada vez mais com a mesma cara de todos os outros bairros e principalmente do vizinho, a ex-princesinha do mar. Depois de inventar o Rio moderno nos anos 1950, de ser um bom lugar para encontrar, para passear, Copacabana perdeu a bossa das idiossincrasias avançadas e agora, vingativa, exporta a maldição para além do Posto 6. Ai de ti, Ipanema!

Os bairros do Rio estão perdendo as particularidades que os identificavam e, aos poucos, transformam-se todos no mesmo amarfanhado bege da falta de personalidade. A aristocrática Laranjeiras dos casarões virou uma continuação do estresse plebeu do Largo do Machado, assim como o Catete já tinha deixado de lado seu comércio republicano de móveis. A padronização urbana é evidente. Aos pés do Cristo, assustado com a aproximação dessa mesmice, o fantasma de Machado de Assis, o bruxo do Cosme Velho, pegou a carruagem com destino ignorado.

Uma cidade se faz da confraternização de suas diferenças geográficas, da valorização dos comércios específicos, do reconhecimento dos vizinhos, da lembrança de seus feitos e, para não esticar muito, da preservação do modus vivendi de cada comunidade. Louve-se o redesenho dos jovens para o Largo de São Francisco da Prainha, no Cais do Porto, mas é preciso preservar a memória de algum sopro feliz do que fomos para que a cidade não pire. Para que os militares continuem a se reconhecer no Leme, os professores se cumprimentem na Tijuca de seus antepassados e os executivos executem no Centro.

A gentrificação pelo avesso, com os bairros perdendo a identidade que tinham e sem acrescentar nada de bom no lugar, é uma diarreia sem poesia. Também não dá crônica, aquela literatura tão carioca em que o sujeito se punha a andar pelas ruas para depois contar as novidades no jornal. A novidade de hoje é que fechou mais uma livraria de Ipanema, o bairro onde a boemia intelectual um dia se abrigou e, pela cultura, pelo modo livre de levar a vida, criou uma cidade divertida, diversificada, que o mundo babava de inveja. Parece que no lugar da livraria abre em breve uma farmácia. 

quarta-feira, 30 de março de 2022

Extrema direita põe democracia na mira

Extrema direita põe democracia na mira

30/03/2022 - Maria Hermínia Tavares - Folha de S. Paulo

No porão das redes sociais por onde escoa o lodo da extrema direita, circulam duas mensagens similares. Na primeira, a imagem estilizada de um Lula barbudo com a arma apontada para um corpo sem rosto ocupa a mosca de um alvo crivado de balas. Na outra, em vídeo, um homem anuncia que é "dia de brincadeira de Magnum 357" e aperta o gatilho enquanto exclama: "Olha lá um petista passando".



Na edição de 11/3, a revista Crusoé, insuspeita de simpatias esquerdistas, informa que clubes de tiro frequentados por apoiadores de Jair Bolsonaro são estimulados a usar imagens do candidato do PT em seus estandes de tiro. Impossível dizer se isso é a regra ou exceção. É certo, porém, que, sob o incentivo declarado do governo, os indicadores de afeição pelas armas e a facilidade de comprá-las dispararam feito metralhadoras.

Dados do Instituto Igarapé, obtidos via Lei de Acesso à Informação, mostram que cresceram os registros oficiais de armas de fogo em poder de pessoas físicas —alarmantes 134% entre 2018 e 2021; assim também o total conhecido nas mãos de CACs (colecionadores, atiradores esportivos e caçadores): 127% no mesmo período; e o contingente com registro ativo nessa categoria. Em 2021, foram concedidos mais de mil novos registros por dia: 388 mil CACs foram autorizados a comprar armas de fogo. O Instituto Igarapé revelou também que até novembro de 2021 existiam 1.802 clubes de tiro espalhados pelo país, um em cada três criado naquele ano.

Esses dados —já de si inquietantes por seus efeitos potenciais para o desfecho de desavenças da vida cotidiana— tornam-se assustadores quando se leva em conta que armamentos podem ser carreados para o crime organizado. E deveriam acionar os mais ruidosos alarmes, à medida que uma minoria radical se prepara para as eleições como se fossem uma guerra de extermínio do adversário.

Sobretudo, o modo pelo qual encaram a busca do voto popular é incompatível com a democracia. Como argumenta o cientista político Adam Przeworski, da Universidade de Nova York, o sistema, ancorado em votações periódicas, é a solução para o trato pacífico dos conflitos de interesse e opinião. Ao permitir a alternância no poder pelas urnas —e só por elas—, a democracia aumenta os custos da violência e reduz os incentivos para que os vencidos contestem os resultados adversos.

Seria absurdo supor que essa tese não se aplique ao Brasil, mas ela requer a rejeição pública e inequívoca da minoria de extrema direita que, com o patrocínio do governo, deseja ir à guerra em outubro para manter o seu chefe onde está.

sexta-feira, 11 de março de 2022

'Por que preocupação é com petróleo e não com trigo?', questiona ex-diretor da ANP.

'Por que preocupação é com petróleo e não com trigo?', questiona ex-diretor da ANP.

David Zylbersztajn afirma que benefício tributário deveria ir para área social, não para combustíveis fósseis
Folha de S. Paulo (fonte)
SÃO PAULO

As propostas do Congresso e do governo federal para suavizar a alta dos preços do diesel e da gasolina no Brasil mostram um fetiche em relação ao petróleo que é incompreensível em termos de prioridade de gastos e refletem uma preocupação puramente eleitoral.

A avaliação é de David Zylbersztajn, professor do Instituto de Energia da PUC-Rio e ex-diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo (1998-2001).

Nesta quinta (10), a Petrobras anunciou um mega-aumento no preço dos combustíveis, e o Senado aprovou propostas que mudam tributos e criam um auxílio-gasolina.

Ele questiona por que não se discute criar mecanismos semelhantes para amenizar o impacto da alta de outras commodities, como soja e trigo, que também subiram por causa do conflito na Ucrânia e afetam mais diretamente as pessoas de menor renda.

Zylbersztajn calcula que seriam necessários cerca de R$ 50 bilhões para reduzir em R$ 1 o preço da gasolina e mais R$ 50 bilhões para ter o mesmo resultado no diesel. O valor supera os R$ 89 bilhões destinados em 2022 ao Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família.

Para ele, a única política que se justifica, do ponto de vista social, é um subsídio ao gás de cozinha, ainda assim, focado apenas nas pessoas de baixa renda.

Zylbersztajn afirma que a cotação do petróleo já ultrapassou a marca dos US$ 100 em outras ocasiões, como em 2008, e que é possível conviver com os repasses para o preço dos combustíveis sem que isso desorganize a economia brasileira.

"Já vivemos isso no passado. Se pegar o petróleo em 2008 e atualizar pela inflação, chega em valores próximos a US$ 140. Se atualizar de 2011 a 2014 fica em um patamar mais alto também. E a gente não viu essa histeria", afirma Zylbersztajn em entrevista à Folha.

Para ele, não faz sentido taxar ganhos extraordinários de empresas de petróleo neste momento com novos tributos. Se a Petrobras pagar mais dividendos com esses lucros, o dinheiro deveria ser utilizado para saúde, educação e outras prioridades, não para subsidiar combustíveis fósseis, afirma.

Fetiche
Por que está todo mundo tão preocupado com o petróleo e não com o trigo, a carne, a soja? É comida na mesa das pessoas. Tem um fetiche em relação ao petróleo que é incompreensível em termos de prioridade.

Vamos privilegiar o consumidor de baixa renda do gás de cozinha. É uma questão social, de atendimento de quem precisa daquilo para poder sobreviver. É um item essencial. É relativamente barato comparado ao resto e com impacto social infinitamente maior.

Vamos pegar gasolina a R$ 7. É o preço de uma passagem de trem no Rio. Ninguém está preocupado com o cara que anda apertado no trem. Em vez de tratar disso, está tratando de quem está sozinho andando de carro. Mesmo no caso do diesel, mais de 80% do transporte rodoviário está nas mãos de grandes transportadoras. Essas empresas têm condições de absorver neste momento esse aumento episódico do diesel.

O que eu chamo de fetiche do petróleo tem muito a ver com atendimento eleitoreiro, claramente. É 90% isso, e o resto é boa-fé de algumas pessoas mal informadas.

Petróleo já foi mais caro
Ficou caro, mas será que é só por causa do barril de petróleo? Esse barril já esteve bem mais alto do que está hoje durante muito tempo entre 2011 e 2014. O nosso problema hoje é o câmbio. As pessoas estão mirando em alguma coisa que não é exatamente para onde se deve mirar.

A gente vem com petróleo perto de US$ 100 desde antes da invasão da Ucrânia. Tem uma volatilidade natural em uma situação como essa. Se a guerra ficar circunscrita à Rússia, estamos falando de 7% da produção mundial, o que é absolutamente maleável até em um prazo relativamente curto.

Já convivemos bastante tempo com valores até maiores. Se o conflito não se estender, a tendência é o mercado se acomodar.

Amortecer flutuações
Existe isso para o resto da economia? Vamos criar um amortecimento para quando os juros forem muito altos, para quando o câmbio for muito alto, quando o preço de outras commodities estiver muito alto.

Só que todo esse amortecimento vem de dinheiro do Tesouro. Quando tira dinheiro do Tesouro, tira da conservação das estradas. Os cortes na educação foram de R$ 700 milhões. Estamos falando em dar bilhões para combustíveis fósseis. Seria lindo pegar o dividendo da Petrobras e aplicar em saúde e educação. Não tem de ser aplicado no setor de óleo e gás.

Para você subsidiar alguma coisa para alguém sentir no bolso precisa de um valor grande. Para baixar em R$ 1 o preço da gasolina, são R$ 50 bilhões. Mais R$ 50 bilhões para o diesel. O orçamento para restauração de estradas são R$ 6 bilhões. Mesmo assim foi cortado. Se você quer reduzir consumo de diesel, não vale a pena recuperar estradas?

Desabastecimento
O câmbio era mais favorável [de 2011 a 2014], e a Petrobras praticou preços artificiais, quase quebrou, teve um prejuízo de US$ 40 bilhões. Foi a maior dívida corporativa do planeta. Hoje, se jogar o preço abaixo do mercado, não vai ter importação, e a Petrobras não tem condições de prover todo o mercado de derivados. Aí vai faltar combustível.

Taxação de petroleiras
Você tem um contrato de concessão. Os lucros em relação à produtividade dos campos já são taxados. Estaria claramente quebrando contrato. E seria a partir de que lucro? O que é lucro excepcional? Se você quer atrair investimento, vai quebrar a regra de jogo, vai quebrar contrato? Nos contratos de concessão estão estabelecidas as regras dos impostos que você paga.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Vamos ter que parar de pôr a culpa no metabolismo....

Vamos ter que parar de pôr a culpa no metabolismo....
Por Marcio Atalla 19/01/2022 • 04:30 O Globo

Aquela velha história de que com o passar dos anos o metabolismo vai ficando mais lento ficou velha mesmo! Um estudo científico publicado na revista Science está dando o que falar. O estudo foi feito por mais de 40 anos, com cerca de 6.400 participantes de 29 países diferentes, de bebês com 8 dias de vida até idosos de 90 anos, e envolveu 80 coautores que participaram do estudo fazendo as medições da quantidade de dióxido de carbono quando essas pessoas faziam atividade física, além de peso, altura, sexo e IMC. O objetivo era entender como funciona nosso metabolismo ao longo de toda a vida.

O resultado é muito impressionante e acaba de vez com aquela história de que "a culpa é do metabolismo", que com 30 já não é tão bom, com 40 fica ainda pior e com 50 fica quase possível impossível emagrecer e ter disposição. Afinal, acreditava-se que a taxa metabólica ia caindo, gradativamente, desde os 30 até o final dos dias. Nada disso. O que esse estudo comprovou é bem diferente. Segundo os resultados obtidos, nosso metabolismo sofre alterações em apenas quatro momentos da vida. Fica dividido assim: no primeiro ano de vida a queima calórica acelera rapidamente e chega a ser o dobro do valor médio dos adultos. De 1 até 20 anos a taxa metabólica cai, gradativamente, 3% ao ano. Quando chegamos aos 20 anos, essa mesma taxa atinge um platô que, pasmem, será o mesmo até os 60 anos de idade!! Aí, sim, após os 60 anos ela começa a cair em torno de 0,7% ao ano, e a desculpa do metabolismo pode ser, finalmente, usada para os 60+. Não foi comprovado nenhum aumento do metabolismo na puberdade ou gravidez, assim como nenhuma desaceleração na menopausa.

Para descobrir o impacto da idade na queima de calorias, os cientistas ajustaram fatores como tamanho do corpo e quantidade de massa muscular (volume e músculos promovem uma queima calórica maior) e, dessa forma, compararam o metabolismo das pessoas por cada quilo. Todos os participantes fizeram um teste chamado "água duplamente marcada", em que todos bebem uma água em que parte do hidrogênio e do oxigênio são substituídos por isótopos, que podem ser rastreados na urina. Calculando quanto hidrogênio e oxigênio você perde por dia, pode-se saber quanto dióxido de carbono o corpo produz diariamente. Essa medida é muito precisa no cálculo da quantidade de calorias que são queimadas, porque não existe queima calórica sem produção de dióxido de carbono.

Os pesquisadores analisaram o gasto energético diário total médio, que inclui as calorias que queimamos fazendo todo tipo de atividade, desde respirar e digerir alimentos até pensar e movimentar o corpo. A pesquisa revelou que 65% do metabolismo basal é usado para que as funções do fígado, coração, cérebro e rins aconteça, e que esses órgãos somados equivalem a apenas 5 quilos do nosso peso corporal.

Logo, a justificativa de que o metabolismo fico lento, que houve uma redução da velocidade metabólica, é errada. As reações enzimáticas continuam as mesmas. O que ocorre, com a idade, é que as células vão realmente parando de funcionar, porque no próprio processo de multiplicação acontecem certas desordens, certos erros genéticos, que impedem as novas células de se reproduzir. Isso se chama envelhecimento.

O que muda mesmo é a discrepância entre o que se come e o que se gasta. E isso, como eu sempre digo, acontece de uma forma imperceptível, com o passar do tempo. Bastam 100, 200 calorias a mais por dia. Na faixa etária dos 40 pra cima, bem naquele momento da vida que você passa a curtir comer melhor, sair mais pra jantar do que pra dançar, encontrar os amigos é sempre ao redor de uma mesa, e não na praia ou parque, fazendo algum esporte... Os hábitos mudam, a preguiça aumenta. São essas calorias a mais que entram e não saem, que antes eram "culpa do metabolismo", mas que são a principal causa do ganho de peso. Esse estudo deixa claro a grande importância que nossos hábitos têm sobre nossa saúde e na manutenção de um peso considerado saudável, e o quanto precisamos equilibrar o nosso gasto calórico x nossa ingestão de calorias. O quanto precisamos movimentar nosso corpo e fugir do sedentarismo.

sábado, 27 de novembro de 2021

Por que Lula não condena o autoritarismo de esquerda?

Por que Lula não condena o autoritarismo de esquerda?

Por Pablo Ortellado
O GLOBO
27/11/2021 • 00:01

No final de sua viagem à Europa, Lula deu entrevista ao jornal espanhol El País e foi questionado sobre o governo de Daniel Ortega na Nicarágua e sobre os protestos em Cuba. Suas respostas talvez evasivas, talvez condescendentes com o autoritarismo de esquerda provocaram amplo debate. Afinal de contas, por que Lula e o PT não conseguem condenar com clareza o autoritarismo na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba?

Cuba é uma ditadura de partido único, sem liberdade de reunião e sem liberdade de organização sindical. O governo da Venezuela subordinou o Legislativo e o Judiciário, acabando com a separação entre os Poderes, redesenhou distritos eleitorais para dificultar a eleição de opositores, perseguiu veículos de imprensa, torturou e assassinou dissidentes. O governo nicaraguense prendeu os candidatos da oposição para poder ganhar as eleições, prendeu arbitrariamente centenas de outros dissidentes e suspendeu a operação de ONGs. Todos esses abusos antidemocráticos estão amplamente documentados nos relatórios das organizações de direitos humanos.

Nos 13 anos em que esteve no poder, o PT não deu muitos sinais de que queria esse tipo de autoritarismo no Brasil. Os críticos do petismo podem dizer que foi apenas falta de oportunidade, mas, agora que conhecemos o governo Bolsonaro, sabemos o tamanho do estrago que um governo realmente orientado ao autoritarismo é capaz de fazer.

O bolsonarismo atacou sem trégua a imprensa, o STF e o Congresso e incitou os militares a promover uma intervenção "constitucional"; além disso, submeteu a um duro controle político a PGR, a Polícia Federal e os órgãos ambientais, destruindo sua autonomia institucional. Perto disso, as críticas dos petistas à imprensa ("Partido da Imprensa Golpista"), a perseguição a Larry Rohter, correspondente do New York Times, e mesmo a tentativa de aprovar a PEC 33, que diminuía o poder do STF, parecem pouco importantes.

Se o tipo de governo de esquerda dos petistas é assim tão diferente do que vemos em Cuba, na Venezuela ou na Nicarágua, por que Lula e seu partido não condenam sem meias palavras esses regimes para afastar qualquer tipo de suspeita de que, se tiverem a oportunidade, podem colocar a democracia brasileira em risco?

A primeira explicação é que o petismo abriga setores autoritários que acreditam que a democracia burguesa não é fundamental e pode —ou deve — ser descartada para enfrentar o inimigo imperialista ou de classe. Esse setor não é majoritário, mas tem peso suficiente para influenciar as posições do partido.

A segunda explicação é o entendimento de que é necessária a solidariedade com os governos de esquerda diante dos adversários imperialistas e da direita. Em vez de criticar o governo de Cuba, deve-se enfatizar o embargo econômico dos Estados Unidos; em vez de criticar Maduro, deve-se enfatizar a oposição golpista.

Essa ênfase nos abusos da reação silencia sobre os abusos da esquerda, mas funciona como uma espécie de garantia de que, quando chegar a vez de a esquerda brasileira ser atacada, ela receberá em troca a solidariedade internacional —como efetivamente ocorreu na época do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.

A terceira explicação é, de certa forma, ligada à segunda: os petistas entendem que o impeachment de Dilma e a prisão de Lula foram uma reação aos avanços sociais produzidos por seus governos e, por não contarem com suficiente apoio interno, precisaram do apoio internacional.

Nessa leitura para lá de particular, Lula não foi investigado porque houve um esquema de corrupção bilionário entre a Petrobras, as empreiteiras e políticos, e Dilma não sofreu impeachment porque era inepta e não sabia negociar com o Congresso. Lula e Dilma, segundo essa versão, foram perseguidos porque as elites não suportaram ver os pobres com comida no prato e as empregadas domésticas andando de avião. Diante do ataque das elites econômicas, a solidariedade internacional seria imprescindível.

A ambivalência do petismo com respeito aos governos autoritários de esquerda é fruto da combinação desses três fatores. E essa ambivalência não é uma excentricidade brasileira. Nos últimos anos, impactou também as candidaturas de Pablo Iglesias, na Espanha; de Jean-Luc Mélenchon, na França; e, mais recentemente, de Gabriel Boric, no Chile.

Nestes tempos em que a democracia é duramente tensionada, não podemos mais nos dar ao luxo de alimentar qualquer ambivalência. Hoje, mais do que nunca, a defesa da democracia precisa estar em primeiro lugar.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Como bancos de couro de SUVs impulsionam o desmatamento da Amazônia.

Como bancos de couro de SUVs impulsionam o desmatamento da Amazônia.

New York Times, 22 de novembro de 2021

BURITIS - Certa manhã deste verão, Odilon Caetano Felipe, fazendeiro que cria gado em terras desmatadas ilegalmente na Amazônia, se encontrou com um negociante e fechou um acordo para a venda de mais 72 animais engordados. Com uma simples canetada, Felipe limpou o registro de seu gado. E, ao vender os animais, ocultou seu papel na destruição da maior floresta tropical do mundo.

No almoço, logo após a venda de 14 de julho, Felipe falou abertamente sobre o negócio que o enriquece. Ele admitiu que corta árvores da densa floresta amazônica e que não pagara pela terra. Também reconheceu que estrutura suas vendas para esconder as verdadeiras origens de seu gado, vendendo-o a um intermediário e forjando registros que mostram, falsamente, que seus animais vêm de uma fazenda legal. Outros fazendeiros da região fazem o mesmo, disse ele.

"Não faz a menor diferença", disse ele, se sua fazenda é legal ou não.

Uma investigação do New York Times sobre a rápida expansão da indústria frigorífica no Brasil – um negócio que vende não apenas carne para o mundo, mas toneladas de couro por ano para grandes empresas nos Estados Unidos e em outros países – identificou lacunas em seus sistemas de monitoramento, o que permite que peles cruas de animais criados em terras desmatadas ilegalmente na Amazônia passem sem detecção pelos curtumes do Brasil e sigam para compradores do mundo todo.

A fazenda de Felipe é uma das mais de 600 que operam em uma área da Amazônia conhecida como Jaci-Paraná, uma reserva ambiental protegida onde o desmatamento é restrito. E transações como a dele são os pilares de um complexo comércio global que liga o desmatamento da Amazônia a um apetite crescente nos Estados Unidos por luxuosos bancos de couro em picapes, SUVs e outros veículos vendidos por algumas das maiores montadoras do mundo, entre elas a General Motors, Ford e Volkswagen.

Um veículo de luxo pode exigir mais de uma dúzia de peles cruas, e os fornecedores americanos compram cada vez mais couro do Brasil. Embora a região amazônica seja um dos maiores fornecedores mundiais de carne bovina, cada vez mais para as nações asiáticas, o apetite global por couro acessível também significa que as peles cruas desses milhões de bovinos abastecem um lucrativo mercado internacional de couro avaliado em centenas de bilhões de dólares por ano.

Esse comércio de couro mostra como os hábitos de compra do mundo rico estão ligados à degradação ambiental nos países em desenvolvimento – neste caso, ajudando a financiar a destruição da Amazônia, apesar de sua valiosa biodiversidade e do consenso científico de que protegê-la ajudaria a desacelerar as mudanças climáticas.

Para rastrear o comércio global de couro desde as fazendas ilegais na floresta tropical brasileira até os bancos de veículos americanos, o Times entrevistou fazendeiros, negociantes, promotores e reguladores no Brasil e também visitou curtumes, fazendas e outras instalações. O Times falou com participantes de todos os níveis do comércio ilícito na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, área do estado de Rondônia que recebeu proteções especiais por abrigar comunidades de pessoas que, ao longo de gerações, viveram da terra por extração de seringueiras.

Essas comunidades agora estão sendo expulsas por fazendeiros que querem terras para o gado. Na última década, os fazendeiros aumentaram significativamente sua presença na reserva e, hoje, cerca de 56% dela foi desmatada, de acordo com dados compilados pelo órgão ambiental estadual.

O relatório também se baseia na análise de dados corporativos e de comércio internacional de diversos países e em milhares de certificados de transporte de gado emitidos pelo governo brasileiro. Os certificados foram obtidos pela Environmental Investigation Agency, um grupo de defesa em Washington. O Times verificou independentemente os certificados e obteve milhares de certificados adicionais em separado.

A investigação possibilitou o rastreamento do couro de fazendas ilegais na Amazônia até instalações operadas pelos três maiores frigoríficos do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – e daí para os curtumes que eles abastecem. A JBS se descreve como a maior processadora de couro do mundo.

Segundo Aidee Maria Moser, procuradora aposentada de Rondônia que passou quase duas décadas lutando contra a pecuária ilegal na reserva Jaci-Paraná, a prática de vender animais criados na reserva para intermediários indica a intenção de ocultar sua origem.

"É uma forma de dar uma aparência de legalidade ao gado", disse ela, "para que os frigoríficos neguem que haja algo ilegal".

O problema não se limita a Rondônia. No mês passado, uma auditoria conduzida por procuradores do Pará, estado vizinho e lar do segundo maior rebanho bovino da Amazônia, constatou que, entre janeiro de 2018 e junho de 2019, a JBS comprou 301 mil animais, o equivalente a 32% de suas compras no estado, de fazendas que violavam os compromissos de prevenir o desmatamento ilegal.

A JBS discordou dos critérios utilizados pelo Ministério Público e, em resposta à auditoria, concordou em aprimorar seu sistema de monitoramento, bloquear os fornecedores sinalizados pela pesquisa e doar US $ 900 mil ao estado.

Para ter uma ideia da escala das fazendas que operam em áreas vulneráveis de toda a Amazônia brasileira, o Times sobrepôs mapas governamentais de terras protegidas da Amazônia, áreas desmatadas e limites de fazendas, com as localizações das fazendas que a JBS listou publicamente como fornecedoras de seus matadouros em 2020. Uma análise mostrou que, entre as fornecedoras da JBS, fazendas que cobrem cerca de 6500 quilômetros quadrados se sobrepõem significativamente a terras indígenas, áreas de conservação ou regiões que foram desmatadas após 2008, quando se implementaram as leis que regulamentam o desmatamento no Brasil.

A metodologia e os resultados foram examinados e verificados por uma equipe de pesquisadores e acadêmicos independentes que estudam o uso do solo na Amazônia brasileira.

Os dados do comércio internacional mostraram que as empresas proprietárias de curtumes abastecidos com as peles cruas enviaram couro para fábricas no México administradas pela Lear, uma grande fabricante de assentos que abastece montadoras de automóveis nos Estados Unidos. Em 2018, a Lear disse que estava comprando cerca de 70% de suas peles cruas do Brasil. As peles brasileiras também vão para outros países, entre eles Itália, Vietnã e China, para uso nas indústrias automotiva, de moda e de móveis, mostraram os dados comerciais.

A JBS reconheceu que quase três quartos das fazendas identificadas na análise do Times se sobrepõem a terras que o governo classifica como desmatadas ilegalmente ou terras indígenas e zonas de conservação. Mas informou que todas as fazendas cumpriam as regras para evitar o desmatamento quando a JBS comprara suprimentos delas.

A JBS informou que, nos casos de sobreposição, as fazendas foram autorizadas a operar em áreas protegidas ou desmatadas, ou tiveram seus limites alterados, ou seguiram regras para corrigir suas violações ambientais. A pecuária é permitida em algumas áreas protegidas no Brasil, desde que siga práticas sustentáveis.

Em nota, a JBS informou que há mais de uma década mantém um sistema de monitoramento que verifica o cumprimento da política ambiental pelos fornecedores. "Mais de 14 mil fornecedores foram bloqueados por descumprirem esta política", disse a nota. Porém, afirmou a empresa, "o grande desafio da JBS, e da cadeia produtiva da pecuária de corte em geral, é monitorar os fornecedores de seus fornecedores, uma vez que a empresa não tem informações a seu respeito".

O desmatamento da Amazônia aumentou nos últimos anos, à medida que os fazendeiros corriam para atender à crescente demanda por carne bovina, especialmente da China. Representantes da indústria do couro afirmam que, enquanto houver demanda por carne bovina, eles simplesmente usarão peles cruas que, de outra forma, seriam enviadas para aterros sanitários.

Raoni Rajão, que estuda as cadeias produtivas da Amazônia na Universidade Federal de Minas Gerais, disse que, como a indústria do couro torna a pecuária mais lucrativa, ela compartilha a responsabilidade por qualquer desmatamento. "O couro pode ter alto valor agregado", disse ele.

A perda da floresta está destruindo a capacidade de a Amazônia absorver dióxido de carbono, que as árvores retiram do ar. O dióxido de carbono da queima de combustíveis fósseis é o principal motor das mudanças climáticas. O Brasil foi uma das mais de 100 nações que se comprometeram a acabar com o desmatamento até 2030 na recente cúpula do clima das Nações Unidas em Glasgow, na Escócia.

Embora a maioria das fazendas na região amazônica não esteja ligada ao desmatamento ilegal, as descobertas mostram como o couro ilegal está entrando na cadeia de abastecimento global, contornando um sistema que os próprios frigoríficos e empresas de couro criaram nos últimos anos para tentar mostrar que seu gado vem apenas de fazendas legítimas.

Em resposta a perguntas detalhadas, JBS, Marfrig e Minerva disseram não saber que o gado da reserva Jaci-Paraná estava entrando em suas cadeias de abastecimento.

As três empresas disseram que têm sistemas para monitorar fazendas que abastecem diretamente seus frigoríficos e que excluem fazendas que não cumprem as leis ambientais. Mas todas reconheceram que não conseguem rastrear fornecedores indiretos, como Felipe, que vende gado por intermediários, mascarando suas origens.

A Lear disse que tem "um processo de abastecimento robusto" que garante que a empresa trabalhe "com os fornecedores mais capazes e avançados, comprometidos com a compra de peles de gado criado em fazendas que seguem as regras". A empresa disse que, se os fornecedores violassem suas políticas, tomaria medidas que podem ocasionar o cancelamento de seus contratos "e/ou ação legal contra o fornecedor".

A GM disse que espera que os fornecedores "cumpram as leis, regulamentos e ajam de maneira consistente com os princípios e valores" da montadora. A Ford disse que aspirava a "fornecer apenas matérias-primas produzidas de maneira responsável". A Volkswagen disse que seus fornecedores já aderem a um alto nível de sustentabilidade.

Em Jaci-Paraná, a demanda global por couro está ajudando a sustentar um rebanho crescente de 120 mil bovinos onde antes havia floresta. "Se todo o gado fosse vendido", disse Moser, a ex-promotora, o governo teria dinheiro suficiente "para reflorestar toda a reserva".

'Eu vim aqui para matar vocês'
Chovia torrencialmente quando dois homens atracaram na casa de Lourenço Durães às margens do rio Jaci-Paraná, em dezembro do ano passado. Durães, seringueiro de 71 anos, convidou os homens a entrar e lhes ofereceu café. Então, depois de passar alguns minutos falando sobre o tempo, um dos visitantes foi direto ao ponto.

"Não vou enganar vocês", disse ele, segundo Durães e um de seus amigos, que juntos descreveram o encontro recentemente. "Eu vim aqui para matar vocês".

Os homens queriam se livrar de Durães porque a sua terra é muito valiosa para os fazendeiros.

Jaci-Paraná foi criada em 1996 para conceder a uma comunidade de seringueiros o direito de buscar seu sustento. Durães está entre os últimos seringueiros. A comunidade está sendo expulsa pelo desmatamento.

"Estamos com medo, mas espero justiça", disse Durães, acrescentando que acredita ter sido poupado naquele dia por ser idoso.

Segundo Durães e um boletim de ocorrência de seu amigo, o pistoleiro identificou a pessoa que o enviara, mas apenas por um apelido. A polícia não investigou o caso, de acordo com o boletim de ocorrência, porque Durães e o seu amigo não conseguiram fornecer o nome completo da pessoa para apresentar queixa.

Em entrevista, Lucilene Pedrosa, que dirige a divisão regional da polícia, disse que sua equipe estava esperando que os homens dessem mais informações para dar continuidade à investigação.

Dados do governo analisados pelo Times mostram o apetite por terras na região. De acordo com os números, entre janeiro de 2018 e junho de 2021, fazendas operando em terras desmatadas ilegalmente em Jaci-Paraná venderam pelo menos 17,7 mil cabeças de gado para fazendas intermediárias. Os compradores eram fornecedores dos três grandes frigoríficos, JBS, Marfrig e Minerva, segundo dados governamentais e corporativos.

Quase metade dessas 17,7 mil cabeças de gado foi comprada por Armando Castanheira Filho, um negociante local que tem sido um dos maiores compradores da região de Jaci-Paraná e fornecedor direto dos três grandes frigoríficos. As vendas que passam por ele criam um registro que oculta que o gado é originário de fazendas ilegais.

Um repórter do Times testemunhou uma transação desse tipo quando Felipe, o fazendeiro que admitiu participação no desmatamento, vendeu seus 72 bovinos este ano. O comprador, nesse dia, foi Castanheira.

O Times então rastreou os animais. Onze horas depois, eles foram parar em um matadouro da Marfrig.

A Marfrig mantém um site que lista a procedência de seu gado, um esforço para mostrar que adquire gado de forma responsável. No caso da remessa de 14 de julho rastreada pelo Times, a fazenda de Felipe não está listada no site. Mas a lista de fazendas que forneceram gado para o abate do dia seguinte inclui a fazenda da Castanheira, que fica fora da reserva.

No final daquele dia, no matadouro da Marfrig, um caminhão com o nome do curtume Bluamerica saiu do matadouro carregando peles cruas. O Bluamerica é um dos curtumes que abastece a Lear, a fabricante de bancos de automóveis.

Castanheira confirmou que parte do gado que compra da reserva vai direto para o abate, sem passar por sua fazenda, embora a papelada indique que vem de seus pastos. Ele negou ter feito isso para esconder a origem do gado.

"Não faço isso para 'lavar' nada", escreveu ele em uma mensagem de texto. Ele disse que sua intenção era simplesmente lucrar com a diferença entre o que ele paga por animal e o que pode receber do matadouro.

Marfrig, Minerva e JBS disseram não despachar caminhões para coleta de gado na reserva Jaci-Paraná, ou em qualquer local que não seja de seus fornecedores diretos. Os advogados da Marfrig também entraram com uma queixa junto à polícia, relacionando os fatos descritos pelo Times e os qualificando como "possíveis episódios de natureza criminosa".

Castanheira agora afirma que o repórter do Times testemunhou o único exemplo desse tipo de transação feita por ele. Os três frigoríficos afirmam já ter excluído Castanheira de seu pool de fornecedores.

Duas das proprietárias do Bluamerica, empresas chamadas Viposa e Vancouros, disseram que seus fornecedores são sujeitos a auditorias regulares e reconheceram os desafios de rastrear fornecedores indiretos. Ambas as empresas disseram estar trabalhando com o World Wide Fund for Nature, grupo ambientalista com sede na Suíça, para melhorar seus sistemas.

Uma análise dos dados do governo sobre a movimentação de gado em Jaci-Paraná e áreas próximas entre 2018 e 2021 identificou 124 transações que mostram sinais de lavagem de gado, dizem os especialistas. As transações mostram que pelo menos 5.600 cabeças de gado foram transferidas das fazendas da reserva para intermediários que, no mesmo dia, venderam gado para os três grandes frigoríficos.

Holly Gibbs, geógrafa da Universidade de Wisconsin-Madison que pesquisa o agronegócio na Amazônia há uma década, disse que, embora os intermediários legítimos muitas vezes comprem e vendam gado no mesmo dia, o fato de as transações não serem monitoradas de perto "é uma enorme brecha".

"Eles estão trazendo para as cadeias de abastecimento nacionais e internacionais animais que foram criados numa área protegida", disse ela.

A cadeia de suprimentos – da fazenda ao showroom de automóveis – é complexa. As peles cruas dos frigoríficos Minerva e JBS vão para curtumes próprios da JBS, ao passo que as peles cruas da Marfrig são processadas principalmente pela Vancouros e Viposa, segundo dados corporativos e entrevistas. Dados comerciais compilados pela Panjiva, a unidade de pesquisa sobre cadeia de suprimentos da S&P Global Market Intelligence, mostram que a fabricante de assentos Lear, com sede em Southfield, Michigan, é a maior compradora americana de peles cruas da JBS, Vancouros e Viposa.

Em maio, fazendeiros ilegais em Jaci-Paraná conquistaram uma importante vitória. O governador de Rondônia sancionou uma medida que reduziu o tamanho da reserva em 90%.

A lei, que os promotores estão contestando na Justiça, abre caminho para que fazendeiros de terras desmatadas ilegalmente legalizem seus negócios. Os críticos da lei disseram que ela poderia abrir um precedente para mais desmatamento em outras reservas protegidas.

Independentemente do desfecho dessa luta judicial, Durães, o seringueiro, disse que não tinha intenção de sair de seu pedaço de mata. O pasto agora está a menos de um quilômetro de sua casinha de madeira.

Viver entre as árvores exuberantes é a única existência que ele conhece. E ficar, disse ele, é "a única maneira de manter a floresta de pé".

"Transparência" com brecha
A cada poucos segundos, no curtume Vancouros, no sul do Brasil, o som de peles cruas caindo em dezenas de tambores de madeira de 3 metros de altura é interrompido pelos cliques de um marcador pneumático, com o qual cada peça é perfurada com um código de sete dígitos que registra sua origem.

Clébio Marques, diretor comercial do curtume, puxou da pilha uma pele crua azulada e úmida, pegou seu celular e digitou o código no site que sua empresa criou para clientes como a Lear. Apareceram os detalhes do fornecedor daquela peça específica.

"Todo o nosso couro é rastreável", disse ele. "Não é obrigatório, ninguém pediu, mas sentimos que o mercado precisava de mais transparência".

Mas então Marques foi apresentado à descoberta de que um de seus fornecedores mais importantes, a Marfrig, estava comprando gado de fornecedores cujas transações apresentavam sinais de lavagem de gado. "Estou surpreso", disse ele. "Esperamos que os produtos sejam legais".

Ele ressaltou, porém, que a culpa não era do monitoramento de sua própria empresa.

"Temos que confiar nos documentos que nos são fornecidos, porque nossa auditoria é feita com base no sistema deles", disse Marques.

Todos os três grandes frigoríficos têm sistemas projetados para rastrear a última fazenda de onde veio o gado que abatem. No entanto, todos os três têm a mesma falha: não levam em consideração o fato de que o gado normalmente não passa a vida inteira em uma única fazenda. Portanto, não consideram que um fornecedor direto possa estar vendendo gado que foi efetivamente criado por outra pessoa, em terras desmatadas ilegalmente.

Os sistemas de rastreamento foram criados após um relatório do Greenpeace de 2009, o qual relacionou os fornecedores brasileiros de carne e couro ao desmatamento ilegal. Hoje, as três principais empresas afirmam que têm políticas de desmatamento de tolerância zero para todos os fornecedores diretos.

Todos os três principais matadouros apresentam publicamente seus dados de rastreamento online. Os da JBS são os mais detalhados; as outras empresas omitem as localizações precisas das fazendas. Foi a análise do Times desses dados da JBS para 2020, o ano mais recente disponível, que indicou que entre os fornecedores da empresa se encontravam fazendas que podem ter violado as regras do governo destinadas a evitar o desmatamento e o deslocamento de povos indígenas.

A JBS disse que todos os seus fornecedores estavam em conformidade no momento da compra. Marfrig e Minerva disseram que compartilharam as informações sobre seus fornecedores diretos que são permitidas pela lei de privacidade de dados do Brasil.

Como parte desse processo, os curtumes contam com uma organização financiada pelo setor, o Leather Working Group, para certificar sua conformidade com as normas. O grupo atribuiu sua classificação máxima, "ouro", a todos os curtumes amazônicos que fornecem couro à Lear, o que significa que seguem práticas ambientalmente sustentáveis.

Em nota, o grupo afirmou estar trabalhando para melhorar seus protocolos de rastreamento, mas que, "devido à complexidade dos sistemas agrícolas no Brasil e à falta de bancos de dados disponíveis ao público, ainda não há, infelizmente, uma solução fácil para esta situação".

JBS, Marfrig e Minerva se comprometeram publicamente a melhorar o rastreamento das fazendas que vendem gado a seus fornecedores diretos. A JBS disse que rastreará uma camada de fornecedores indiretos até 2025. A Marfrig prometeu rastrear todos os seus fornecedores indiretos na Amazônia até 2025. E a Minerva disse que terá cadeias de suprimentos totalmente rastreáveis na América do Sul até 2030.

"Apenas a rastreabilidade do nascimento até o abate para animais individuais poderá garantir que não haja desmatamento nessas cadeias de suprimento de alto risco na Amazônia", disse Rick Jacobsen, da Environmental Investigation Agency, o grupo sem fins lucrativos.

Do Brasil para os carros dos Estados Unidos
Os bancos de couro do SUV Escalade, da Cadillac, descrito por um revendedor no estado de Washington como "um hotel de luxo sobre rodas", pode elevar o preço do modelo top de linha da GM para mais de US $ 100.000.

O Escalade é um dos muitos veículos vendidos nos Estados Unidos que usa bancos de couro e outros acabamentos da Lear, empresa que domina cerca de um quinto do mercado mundial de assentos de automóveis.

Nem a Lear nem a GM registram de onde vem o couro para os bancos do carro. As importações de couro brasileiro pela Lear aumentaram na última década, impulsionadas por um salto na oferta de couro proveniente da JBS, de acordo com dados da Panjiva, a empresa de dados sobre cadeias de suprimentos. No ano passado, a Lear foi a maior importadora americana de couros e peles cruas do Brasil, importando cerca de 6 mil toneladas, a maior parte da JBS, segundo dados da Panjiva.

Caminhonetes de grande porte e utilitários esportivos grandes são uma força crescente por trás da demanda por acabamentos de couro na indústria automobilística. Para muitos compradores, o couro "é sinônimo de luxo e geralmente agrega um valor significativo na revenda", disse Drew Winter, analista sênior da Wards Intelligence, uma empresa de pesquisa automotiva.

Raymond E. Scott, CEO da Lear, expôs a importância dos veículos de luxo em uma apresentação para investidores em junho. A empresa detém 45% do mercado de luxo, disse. E o que estava impulsionando o crescimento no negócio de assentos de Lear era "realmente a força das picapes e SUVs da GM", uma linha que também inclui os modelos Yukon, Chevrolet Tahoe e Suburban.

No Brasil, "100% dos nossos fornecedores usam geofencing" (uma tecnologia que usa GPS para estabelecer uma cerca virtual) "para garantir que eles não comprem animais de fazendas envolvidas com o desmatamento", disse Lear em um comunicado de 2018.

No entanto, as descobertas do Times no Brasil indicam que os fornecedores da Lear não tinham a capacidade de rastrear todo o gado dessa forma.

A Lear disse que exige que todos os fornecedores cumpram uma política de não desmatamento, a qual proíbe o uso de qualquer material proveniente de áreas desmatadas ilegalmente ou de terras indígenas ou outras regiões protegidas. De acordo com registros corporativos, os outros maiores clientes de Lear são Ford, Daimler, Volkswagen e Stellantis, formadas a partir da fusão da Fiat Chrysler com a fabricante francesa de carros Peugeot e Citroën.

A GM disse que sua cadeia de suprimentos foi "construída sobre relacionamentos fortes, transparentes e confiáveis". A Ford disse que exige padrões ambiciosos de si mesma e de seus fornecedores e que "se sai bem em muitas áreas, mas pode melhorar em outras". A Volkswagen disse que está trabalhando para rastrear melhor a cadeia de suprimentos até a fazenda.

A Daimler disse que uma pequena porcentagem de seu couro vem do Brasil. A Stellantis disse que compartilha preocupações sobre rastreabilidade e está trabalhando ativamente para confirmar a localização de curtumes e fazendas em sua cadeia de suprimentos.

No ano passado, cerca de um terço das 15 mil toneladas de couro importadas para os Estados Unidos vieram do Brasil, que recentemente ultrapassou a Itália e se tornou o maior exportador de couro e peles cruas para a América. Muito desse aumento pode ser atribuído à indústria automobilística.

A maior parte dos embarques de couro da JBS para a Lear viaja de São Paulo para Houston, segundo dados comerciais da Panjiva. De lá, grande parte é transportada de caminhão pela fronteira mexicana até uma das duas dúzias de fábricas de assentos de automóveis operadas pela Lear no México, onde os trabalhadores cortam as peles cruas e as costuram nas capas dos assentos.

O couro é então transportado de volta pela fronteira. De janeiro de 2019 a junho de 2021, as fábricas da Lear no México enviaram pelo menos 1.800 toneladas de couro para os Estados Unidos, de acordo com dados de transporte registrados pela Material Research.

Seu destino final: instalações da Lear em todo o país. Elas tendem a se localizar mais próximo das montadoras de automóveis, facilitando que a empresa combine as cores e outras variações dos modelos que chegam nas linhas de montagem dos veículos.

Um desses destinos é a fábrica da GM em Arlington, Texas, uma instalação que se estende por 1 quilômetro quadrado onde a montadora produz alguns dos maiores e mais luxuosos modelos da empresa, entre eles o Escalade. Os trabalhadores automotivos montam cerca de 1.300 SUVs por dia para venda nos Estados Unidos e também para exportação.

A dez minutos de carro do local, a Lear possui uma fábrica de assentos de couro. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.